A Constituição de 1988 prevê, desde a sua redação original, a possibilidade de instituição de um imposto sobre grandes fortunas (IGF) por meio de lei complementar (artigo 153, VII). De lá pra cá, vários projetos de lei para regulamentar esse imposto foram apresentados, e nenhum deles vingou.
O último deles, Projeto de Lei do Senado 128 de 2008 (PLS 128/08) foi remetido, após protocolo, à análise da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, e lá mesmo foi enterrado, em 9 de fevereiro de 2010, com a aprovação do parecer do relator designado, senador Antonio Carlos Magalhães Junior (DEM-BA), como ele prefere ser chamado.
Os argumentos desse parecer em relação ao mérito do PLS 128/08, porém, revelam-se pouco consistentes. Neste texto, procurarei apontar ao leitor tais inconsistências, bem como algumas hipóteses sobre as reais razões por trás desses argumentos e sobre os fatores que levaram o Senado a desaprovar, mais uma vez, o IGF.
Em relação ao mérito do projeto, alega primeiramente o senador Antonio Carlos Magalhães Junior (ACM Jr.) que, “apesar de ser louvável o objetivo primordial do PLS, qual seja, a distribuição de renda, entendemos que a instituição do imposto sobre grandes fortunas é um retrocesso e não atingirá as metas imaginadas”. Isso porque, em primeiro lugar, “outros países adotam ou já adotaram o tributo”, sem, contudo, atingir resultados “satisfatórios”.
Diante disso, o leitor deve se perguntar: a quais países ACM Jr. se refere? Qual foi o critério utilizado para julgar que, nesses países, o imposto sobre grandes fortunas teve resultados “insatisfatórios”? Se o fato dos resultados lá terem sido insatisfatórios inviabiliza — como quer o relator ACM Jr. — o IGF no Brasil, quais são as semelhanças entre aqueles países e o nosso que autorizariam tal assertiva? Essas são perguntas básicas, que bem poderiam ser acompanhadas por outras, mas que não são respondidas pelo que consta no parecer.
Adiante, ACM Jr. alega que, segundo “Ives Gandra da Silva Martins (O imposto sobre grandes fortunas. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, 1697, 23 fev. 2008), as vantagens do tributo são duvidosas e, por isso mesmo, a esmagadora maioria dos países não o adotou”.
Novamente: por que as vantagens do tributo seriam duvidosas? Por que a afirmação de Ives Gandra de que a esmagadora maioria dos países não adotou um imposto sobre grandes fortunas seria uma boa razão para rejeitarmos o PLS 128/2008? Aqui, poderíamos incluir ainda, novamente, vários dos questionamentos colocados no parágrafo anterior, como, e.g., quais seriam as semelhanças entre os demais países que não adotaram um imposto sobre grandes fortunas e o nosso, por que essas semelhanças seriam determinantes para afirmarmos o desserviço de uma taxação dessa natureza no nosso país etc.
A simples opinião de alguém – quem quer que seja –, não deveria ser tida per se como uma boa razão para coisa alguma – quanto mais para que os representantes do povo excluam um projeto de lei. O importante seria examinar a consistência do conteúdo do texto de Ives Gandra Martins. O texto está facilmente disponível na internet, mas, nele, o que temos não é um estudo aprofundado sobre o assunto, mas apenas de uma breve nota onde o autor apresenta comentários gerais da sua opinião pessoal sobre o IGF — sem grandes preocupações empíricas. Por isso, não é possível, no texto de Ives Gandra, elementos que possam fundamentar o posicionamento exposto no parecer de ACM Jr.
O parecer continua, alegando que “[o]s [países] que [...] adotaram [um imposto sobre grandes fortunas] criaram tantas hipóteses de exclusão que, ao longo do tempo, deixou de ter qualquer relevância, pois o volume da arrecadação termina por não compensar o custo operacional de sua administração, fiscalização e cobrança”.
Dessa afirmativa, pode-se logicamente supor que a criação de muitas hipóteses de exclusão inviabilizou economicamente o tributo em alguns países, cuja arrecadação passou a não ser suficiente para cobrir o custo operacional do mesmo. Mas por que isso seria uma boa razão para rejeitarmos o PLS 128/08? O PLS 128/08 apresenta muitas hipóteses de exclusão? Se for esse o caso, não seria lógico que ACM Jr. recomendasse a supressão de uma ou várias hipóteses de exclusão ao invés de opinar superficialmente pelo arquivamento do projeto de lei? É como diz o ditado popular alemão: não podemos jogar o bebê fora da bacia juntamente com a água suja!
Mas sequer o leitor pode cogitar nada disso, pois, novamente, o parecer não traz nenhuma informação adicional. Do texto não dá pra saber nem mesmo quais são os países mencionados pelo Senador ACM Jr., nem quais eram as hipóteses de exclusão presentes na legislação de cada um deles, tampouco como esses dados poderiam ser relevantes para o contexto brasileiro em geral, e para a aprovação ou rejeição do PLS 128/08 em particular.
Ademais, ACM Jr. afirma que o IGF cria “dificuldades administrativas para sua implementação”, pois “a identificação e a avaliação do patrimônio do contribuinte demandariam atividades administrativas complexas e de êxito discutível”, e que há “vários bens de valor elevado, mas de fácil ocultação, a exemplo das obras de arte, jóias, etc.”
Esses são, sem dúvida, questionamentos pertinentes. Porém, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, não fez nem mesmo um levantamento simples sobre os possíveis custos operacionais que o IGF poderia acarretar, sendo que isso poderia ser facilmente requisitado à Receita Federal, ao IPEA etc. De novo, o parecer apresenta afirmativas que não têm qualquer fundamentação para além da opinião do seu autor. E, convenhamos: como dito anteriormente, a simples opinião de alguém, desprovida de maiores fundamentações, não pode e não deve ser tida como uma boa razão para se excluir um projeto de lei.
O parecer afirma ainda, e de forma decidida, que o IGF proposto geraria apenas uma “pequena arrecadação”. Para fundamentar afirmativa tão categórica, o parecer menciona que “estudos têm mostrado que ela se dá em patamares muito pequenos, perfazendo insignificante parcela da carga tributária”.
Todavia, logo em seguida, ao invés de citar vários estudos como havia prometido, ACM Jr. se limita a mencionar indiretamente um único estudo, atribuído à Comissão de Assuntos Fiscais da Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OCDE), e que teria sido citado pelo então Senador Francisco Dornelles em um discurso proferido em 25 de abril de 1991. De acordo com essa citação oral retirada de um discurso proferido pelo Sr. Dornelles há quase vinte anos atrás, o tal estudo “indicava que o imposto sobre as fortunas das pessoas naturais, na década de oitenta, contribuía com apenas meio por cento da receita tributária da Áustria, 0,41% da receita da Dinamarca, 0,31% da Noruega e 0,39% da Suécia”.
Em primeiro lugar, numa sociedade altamente complexa como a nossa, como é que um estudo citado de maneira genérica em um discurso proferido há quase dezenove anos atrás pode autorizar um Senador da República a rejeitar um projeto de lei que cuida de uma questão tão séria?
Como ele pode ser um fundamento, se não é possível saber o título do estudo, onde foi publicado, ou sequer quem é ou quem são os seus autores? Mesmo se for possível ignorar a ausência de qualquer informação que permita saber de onde surgiram esses dados, o leitor poderia, ainda assim, perguntar: acaso justifica-se por que esses números são relevantes para a realidade brasileira? A resposta, infelizmente, é não: o parecer mantém, também aqui, o traço de fragilidade de fundamentação que o permeou do início ao fim.
Sobre os dados do suposto estudo da OCDE em si, é preciso salientar que eles bem poderiam ser interpretados de diversas maneiras diferentes, até mesmo, e de modo bastante razoável, como argumentos a favor do PL 128/08.
De fato, conforme o próprio proponente do PLS 128/08, Senador Paulo Paim (PT-RS), alegou na parte da justificação: “[o]s indivíduos de baixa renda consomem proporcionalmente mais – e por isso contribuem proporcionalmente mais com incidências indiretas”, ao passo que “os indivíduos de baixa renda consomem proporcionalmente mais – e por isso contribuem proporcionalmente mais com incidências indiretas”. Como “[a] renda não consumida será acumulada sob a forma de patrimônio”, ao fazer incidir sobre este “novos impostos, o sistema estará compensando e corrigindo a tributação sobre o consumo” (cfr. a parte de justificação do PLS 128/08, disponível no mesmo arquivo do texto do projeto de lei, após a redação da legislação proposta). Em outras palavras: o IGF não tem apenas função arrecadatória, mas de correção dos distúrbios regressivos do sistema tributários (especialmente dos sistemas com alta tributação indireta, como é o nosso – em contraposição aos países europeus em geral).
Levando isso em consideração, os dados mencionados dizem respeito a países que, na época e também agora, tem índices de concentração de renda muito menores do que o nosso, além de apresentarem sistemas tributários que são, no todo, muito mais progressivos do que o nosso – ou seja, com uma tributação direta maior, e indireta menor do que os índices da nossa carga tributária. Isso poderia levar o leitor a duas hipóteses: (i) pode ser que a taxação sobre grandes fortunas tenha contribuído para os baixos índices de concentração de renda desses países; (ii) se países mais homogêneos fazem uso de impostos sobre grandes fortunas, quiçá o Brasil, tão desigual e carente de tributos que tenham função de correção da regressividade do sistema.
Finalmente, ACM Jr. conclui afirmando que, “ao analisarmos os custos e os benefícios da instituição do IGF, verificamos que ele é um tributo caro demais para a administração tributária”, e que a “justiça social buscada pelo autor da proposição pode ser feita de forma muito mais eficiente pelo imposto de renda”.
Que análise de custos e benefícios foi feita? Nenhuma que conste no parecer! Não há, no parecer, nenhum elemento que permita concluirmos que o IGF, tal qual proposto, seria “caro demais para a administração tributária”.
Além disso, ao dizer que a justiça social buscada pelo PL 128/08 poderia ser feita “de forma muito mais eficiente pelo imposto de renda”, o relator não explica por que ou em que medida isso poderia ser viabilizado. Por que a justiça social poderia ser implementada pelo imposto de renda de forma mais eficiente? Como? São perguntas que o parecer não responde nem indica estudos ou fontes onde essas respostas possam ser encontradas. Também não consta, no Senado, nenhuma proposta de lei do relator em prol de uma maior progressividade do imposto de renda.
De todo modo, uma coisa não anula a outra: um imposto sobre a renda realmente progressivo, que de fato contribua para os objetivos constitucionais do Estado brasileiro de redução das desigualdades sociais, pode e deve conviver com um imposto sobre grandes fortunas. Afinal, por que não usar duas ferramentas de justiça ao invés de apenas uma?
Desconheço a existência de folhas adicionais ou anexos ao parecer que porventura respondam satisfatoriamente a alguns ou todos os questionamentos colocados acima, e, realmente, o parecer não faz menção a nenhum anexo ou adendo. Porém, no caso improvável de eles existirem, farei com satisfação a reforma de todos os meus argumentos. Enquanto isso não ocorre, mantenho as minhas objeções, e lamento por ter que expressá-las. Muito melhor seria escrever um texto que tratasse de uma aprovação ou refutação bem fundamentada do PLS 128/08.
O único senador da Comissão de Assuntos Econômicos a rejeitar o parecer e defender o PLS 128/08 foi o Senador Eduardo Suplicy (PT-SP), recordando que o Senado havia aprovado, anos atrás, um projeto do então Senador Fernando Henrique Cardoso (PLS 162/89 - Complementar) instituindo a tributação sobre grandes fortunas familiares, proposta que acabou sendo rejeitada pela Câmara dos Deputados. Ademais, Suplicy apontou ainda, como vantagens do IGF, “o combate ao excesso de incentivos fiscais e à desigualdade na cobrança do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano)”
É preocupante constatar que, com exceção do Senador Eduardo Suplicy (PT-SP), todos os demais senadores não só aprovaram o parecer, mas o fizeram sem colocar qualquer ressalva. Um deles, o Senador Roberto Cavalcanti (PRB-PB), chegou até a parabenizar o relator pela "sensibilidade, coragem e pelo conhecimento técnico" demonstrados na elaboração do parecer... Sensibilidade e coragem, talvez: sensibilidade para os interesses dos que têm grandes fortunas, e coragem para publicar um parecer tão impreciso. Mas, “conhecimento técnico”?
Ao rejeitar o PL e se alinhar ao Senador Roberto Cavalcanti, o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) fez questão de se declarar “radicalmente contra qualquer aumento de carga tributária”, como se o aumento da carga tributária por meio de um imposto sobre grandes fortunas fosse afetar o povo brasileiro como um todo!
O argumento do senador Flexa Ribeiro é perigoso, pois assume que a carga tributária é alta demais, mas não diz para quem ela realmente é alta demais... Vejamos a tabela abaixo, formulada por mim a partir de um estudo da Unafisco (10 anos de Derrama – a distribuição da carga tributária no Brasil. Brasília: Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal, 2006, página 28).
O último deles, Projeto de Lei do Senado 128 de 2008 (PLS 128/08) foi remetido, após protocolo, à análise da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, e lá mesmo foi enterrado, em 9 de fevereiro de 2010, com a aprovação do parecer do relator designado, senador Antonio Carlos Magalhães Junior (DEM-BA), como ele prefere ser chamado.
Os argumentos desse parecer em relação ao mérito do PLS 128/08, porém, revelam-se pouco consistentes. Neste texto, procurarei apontar ao leitor tais inconsistências, bem como algumas hipóteses sobre as reais razões por trás desses argumentos e sobre os fatores que levaram o Senado a desaprovar, mais uma vez, o IGF.
Em relação ao mérito do projeto, alega primeiramente o senador Antonio Carlos Magalhães Junior (ACM Jr.) que, “apesar de ser louvável o objetivo primordial do PLS, qual seja, a distribuição de renda, entendemos que a instituição do imposto sobre grandes fortunas é um retrocesso e não atingirá as metas imaginadas”. Isso porque, em primeiro lugar, “outros países adotam ou já adotaram o tributo”, sem, contudo, atingir resultados “satisfatórios”.
Diante disso, o leitor deve se perguntar: a quais países ACM Jr. se refere? Qual foi o critério utilizado para julgar que, nesses países, o imposto sobre grandes fortunas teve resultados “insatisfatórios”? Se o fato dos resultados lá terem sido insatisfatórios inviabiliza — como quer o relator ACM Jr. — o IGF no Brasil, quais são as semelhanças entre aqueles países e o nosso que autorizariam tal assertiva? Essas são perguntas básicas, que bem poderiam ser acompanhadas por outras, mas que não são respondidas pelo que consta no parecer.
Adiante, ACM Jr. alega que, segundo “Ives Gandra da Silva Martins (O imposto sobre grandes fortunas. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, 1697, 23 fev. 2008), as vantagens do tributo são duvidosas e, por isso mesmo, a esmagadora maioria dos países não o adotou”.
Novamente: por que as vantagens do tributo seriam duvidosas? Por que a afirmação de Ives Gandra de que a esmagadora maioria dos países não adotou um imposto sobre grandes fortunas seria uma boa razão para rejeitarmos o PLS 128/2008? Aqui, poderíamos incluir ainda, novamente, vários dos questionamentos colocados no parágrafo anterior, como, e.g., quais seriam as semelhanças entre os demais países que não adotaram um imposto sobre grandes fortunas e o nosso, por que essas semelhanças seriam determinantes para afirmarmos o desserviço de uma taxação dessa natureza no nosso país etc.
A simples opinião de alguém – quem quer que seja –, não deveria ser tida per se como uma boa razão para coisa alguma – quanto mais para que os representantes do povo excluam um projeto de lei. O importante seria examinar a consistência do conteúdo do texto de Ives Gandra Martins. O texto está facilmente disponível na internet, mas, nele, o que temos não é um estudo aprofundado sobre o assunto, mas apenas de uma breve nota onde o autor apresenta comentários gerais da sua opinião pessoal sobre o IGF — sem grandes preocupações empíricas. Por isso, não é possível, no texto de Ives Gandra, elementos que possam fundamentar o posicionamento exposto no parecer de ACM Jr.
O parecer continua, alegando que “[o]s [países] que [...] adotaram [um imposto sobre grandes fortunas] criaram tantas hipóteses de exclusão que, ao longo do tempo, deixou de ter qualquer relevância, pois o volume da arrecadação termina por não compensar o custo operacional de sua administração, fiscalização e cobrança”.
Dessa afirmativa, pode-se logicamente supor que a criação de muitas hipóteses de exclusão inviabilizou economicamente o tributo em alguns países, cuja arrecadação passou a não ser suficiente para cobrir o custo operacional do mesmo. Mas por que isso seria uma boa razão para rejeitarmos o PLS 128/08? O PLS 128/08 apresenta muitas hipóteses de exclusão? Se for esse o caso, não seria lógico que ACM Jr. recomendasse a supressão de uma ou várias hipóteses de exclusão ao invés de opinar superficialmente pelo arquivamento do projeto de lei? É como diz o ditado popular alemão: não podemos jogar o bebê fora da bacia juntamente com a água suja!
Mas sequer o leitor pode cogitar nada disso, pois, novamente, o parecer não traz nenhuma informação adicional. Do texto não dá pra saber nem mesmo quais são os países mencionados pelo Senador ACM Jr., nem quais eram as hipóteses de exclusão presentes na legislação de cada um deles, tampouco como esses dados poderiam ser relevantes para o contexto brasileiro em geral, e para a aprovação ou rejeição do PLS 128/08 em particular.
Ademais, ACM Jr. afirma que o IGF cria “dificuldades administrativas para sua implementação”, pois “a identificação e a avaliação do patrimônio do contribuinte demandariam atividades administrativas complexas e de êxito discutível”, e que há “vários bens de valor elevado, mas de fácil ocultação, a exemplo das obras de arte, jóias, etc.”
Esses são, sem dúvida, questionamentos pertinentes. Porém, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, não fez nem mesmo um levantamento simples sobre os possíveis custos operacionais que o IGF poderia acarretar, sendo que isso poderia ser facilmente requisitado à Receita Federal, ao IPEA etc. De novo, o parecer apresenta afirmativas que não têm qualquer fundamentação para além da opinião do seu autor. E, convenhamos: como dito anteriormente, a simples opinião de alguém, desprovida de maiores fundamentações, não pode e não deve ser tida como uma boa razão para se excluir um projeto de lei.
O parecer afirma ainda, e de forma decidida, que o IGF proposto geraria apenas uma “pequena arrecadação”. Para fundamentar afirmativa tão categórica, o parecer menciona que “estudos têm mostrado que ela se dá em patamares muito pequenos, perfazendo insignificante parcela da carga tributária”.
Todavia, logo em seguida, ao invés de citar vários estudos como havia prometido, ACM Jr. se limita a mencionar indiretamente um único estudo, atribuído à Comissão de Assuntos Fiscais da Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OCDE), e que teria sido citado pelo então Senador Francisco Dornelles em um discurso proferido em 25 de abril de 1991. De acordo com essa citação oral retirada de um discurso proferido pelo Sr. Dornelles há quase vinte anos atrás, o tal estudo “indicava que o imposto sobre as fortunas das pessoas naturais, na década de oitenta, contribuía com apenas meio por cento da receita tributária da Áustria, 0,41% da receita da Dinamarca, 0,31% da Noruega e 0,39% da Suécia”.
Em primeiro lugar, numa sociedade altamente complexa como a nossa, como é que um estudo citado de maneira genérica em um discurso proferido há quase dezenove anos atrás pode autorizar um Senador da República a rejeitar um projeto de lei que cuida de uma questão tão séria?
Como ele pode ser um fundamento, se não é possível saber o título do estudo, onde foi publicado, ou sequer quem é ou quem são os seus autores? Mesmo se for possível ignorar a ausência de qualquer informação que permita saber de onde surgiram esses dados, o leitor poderia, ainda assim, perguntar: acaso justifica-se por que esses números são relevantes para a realidade brasileira? A resposta, infelizmente, é não: o parecer mantém, também aqui, o traço de fragilidade de fundamentação que o permeou do início ao fim.
Sobre os dados do suposto estudo da OCDE em si, é preciso salientar que eles bem poderiam ser interpretados de diversas maneiras diferentes, até mesmo, e de modo bastante razoável, como argumentos a favor do PL 128/08.
De fato, conforme o próprio proponente do PLS 128/08, Senador Paulo Paim (PT-RS), alegou na parte da justificação: “[o]s indivíduos de baixa renda consomem proporcionalmente mais – e por isso contribuem proporcionalmente mais com incidências indiretas”, ao passo que “os indivíduos de baixa renda consomem proporcionalmente mais – e por isso contribuem proporcionalmente mais com incidências indiretas”. Como “[a] renda não consumida será acumulada sob a forma de patrimônio”, ao fazer incidir sobre este “novos impostos, o sistema estará compensando e corrigindo a tributação sobre o consumo” (cfr. a parte de justificação do PLS 128/08, disponível no mesmo arquivo do texto do projeto de lei, após a redação da legislação proposta). Em outras palavras: o IGF não tem apenas função arrecadatória, mas de correção dos distúrbios regressivos do sistema tributários (especialmente dos sistemas com alta tributação indireta, como é o nosso – em contraposição aos países europeus em geral).
Levando isso em consideração, os dados mencionados dizem respeito a países que, na época e também agora, tem índices de concentração de renda muito menores do que o nosso, além de apresentarem sistemas tributários que são, no todo, muito mais progressivos do que o nosso – ou seja, com uma tributação direta maior, e indireta menor do que os índices da nossa carga tributária. Isso poderia levar o leitor a duas hipóteses: (i) pode ser que a taxação sobre grandes fortunas tenha contribuído para os baixos índices de concentração de renda desses países; (ii) se países mais homogêneos fazem uso de impostos sobre grandes fortunas, quiçá o Brasil, tão desigual e carente de tributos que tenham função de correção da regressividade do sistema.
Finalmente, ACM Jr. conclui afirmando que, “ao analisarmos os custos e os benefícios da instituição do IGF, verificamos que ele é um tributo caro demais para a administração tributária”, e que a “justiça social buscada pelo autor da proposição pode ser feita de forma muito mais eficiente pelo imposto de renda”.
Que análise de custos e benefícios foi feita? Nenhuma que conste no parecer! Não há, no parecer, nenhum elemento que permita concluirmos que o IGF, tal qual proposto, seria “caro demais para a administração tributária”.
Além disso, ao dizer que a justiça social buscada pelo PL 128/08 poderia ser feita “de forma muito mais eficiente pelo imposto de renda”, o relator não explica por que ou em que medida isso poderia ser viabilizado. Por que a justiça social poderia ser implementada pelo imposto de renda de forma mais eficiente? Como? São perguntas que o parecer não responde nem indica estudos ou fontes onde essas respostas possam ser encontradas. Também não consta, no Senado, nenhuma proposta de lei do relator em prol de uma maior progressividade do imposto de renda.
De todo modo, uma coisa não anula a outra: um imposto sobre a renda realmente progressivo, que de fato contribua para os objetivos constitucionais do Estado brasileiro de redução das desigualdades sociais, pode e deve conviver com um imposto sobre grandes fortunas. Afinal, por que não usar duas ferramentas de justiça ao invés de apenas uma?
Desconheço a existência de folhas adicionais ou anexos ao parecer que porventura respondam satisfatoriamente a alguns ou todos os questionamentos colocados acima, e, realmente, o parecer não faz menção a nenhum anexo ou adendo. Porém, no caso improvável de eles existirem, farei com satisfação a reforma de todos os meus argumentos. Enquanto isso não ocorre, mantenho as minhas objeções, e lamento por ter que expressá-las. Muito melhor seria escrever um texto que tratasse de uma aprovação ou refutação bem fundamentada do PLS 128/08.
O único senador da Comissão de Assuntos Econômicos a rejeitar o parecer e defender o PLS 128/08 foi o Senador Eduardo Suplicy (PT-SP), recordando que o Senado havia aprovado, anos atrás, um projeto do então Senador Fernando Henrique Cardoso (PLS 162/89 - Complementar) instituindo a tributação sobre grandes fortunas familiares, proposta que acabou sendo rejeitada pela Câmara dos Deputados. Ademais, Suplicy apontou ainda, como vantagens do IGF, “o combate ao excesso de incentivos fiscais e à desigualdade na cobrança do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano)”
É preocupante constatar que, com exceção do Senador Eduardo Suplicy (PT-SP), todos os demais senadores não só aprovaram o parecer, mas o fizeram sem colocar qualquer ressalva. Um deles, o Senador Roberto Cavalcanti (PRB-PB), chegou até a parabenizar o relator pela "sensibilidade, coragem e pelo conhecimento técnico" demonstrados na elaboração do parecer... Sensibilidade e coragem, talvez: sensibilidade para os interesses dos que têm grandes fortunas, e coragem para publicar um parecer tão impreciso. Mas, “conhecimento técnico”?
Ao rejeitar o PL e se alinhar ao Senador Roberto Cavalcanti, o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) fez questão de se declarar “radicalmente contra qualquer aumento de carga tributária”, como se o aumento da carga tributária por meio de um imposto sobre grandes fortunas fosse afetar o povo brasileiro como um todo!
O argumento do senador Flexa Ribeiro é perigoso, pois assume que a carga tributária é alta demais, mas não diz para quem ela realmente é alta demais... Vejamos a tabela abaixo, formulada por mim a partir de um estudo da Unafisco (10 anos de Derrama – a distribuição da carga tributária no Brasil. Brasília: Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal, 2006, página 28).
A tabela não poderia ser mais clara: quanto mais rica uma família é, menos ela se compromete com o pagamento de tributos. O Estado atua, assim, como um Robin Hood às avessas. A carga tributária é alta para os que recebem menos, e cada vez mais baixa para os que recebem mais.
Antes que o leitor possa contestar a atualidade dos dados de 2004, o que seria muito justo diante das minhas exigências em relação ao parecer do Senador ACM Jr., esclareço que, por uma questão lógica, é possível afirmar que a situação permanece a mesma na atualidade: a carga tributária, hoje, continua distribuída de forma injusta.
Trata-se de uma questão lógica porque ainda estão presentes na legislação tributária todos os fatores que levaram a uma distribuição tão injusta da carga tributária no ano de 2004 (em resumo: alta tributação sobre o consumo, com pouca seletividade; baixa tributação sobre renda e patrimônio, com pouca progressividade). Dito de outro modo: não houve nenhuma mudança significativa de 2004 pra cá que justificasse qualquer tipo de otimismo em relação à alta regressividade do nosso sistema tributário.
É do interesse de quem se beneficia desse sistema que a população não saiba como ele funciona. Por isso membros do PSDB e do DEM (antigo PFL), dentre outros partidos e grupos políticos organizados (como parte da FIESP e da OAB-SP, por exemplo), insistem no discurso contrário à “alta carga tributária”. Da próxima vez que o leitor ouvir esse discurso, desconfiará do seu interlocutor, e perguntará: alta pra quem?
Diante de tudo isso, é de se cogitar: se os senadores estavam sendo altruístas, quais seriam, então, as reais razões por trás da rejeição do IGF no Senado? Para tentar responder à pergunta, levantarei algumas hipóteses, mais ou menos verificáveis por meio de observação simples: (1) não há, na chamada “sociedade civil”, articulação política coesa o suficiente para pressionar o Congresso Nacional a aprovar lei complementar regulamentando o IGF; (2) os senadores agem em benefício dos grandes empresários que financiaram suas campanhas, contribuintes em potencial do IGF; (3) alguns dos senadores (ou todos?) que aprovaram o parecer de ACM Jr. agiram em benefício próprio ou de suas famílias, amigos e financiadores de campanha, pois provavelmente eles ou aqueles detêm grandes fortunas.
À parte dos argumentos colocados pelo Senador ACM Jr. e pelos demais senadores, outros argumentos de natureza econômica são tradicionalmente colocados para justificar a inexistência de um imposto sobre grandes fortunas no Brasil, como, e.g., o receio de que tal imposto provocará uma fuga de capitais ou uma redução das taxas de poupança e investimento. Contudo, esses também não parecem ser bons argumentos.
Uma eventual fuga de capitais não deveria ser justificativa para o não uso de uma ferramenta de justiça, mas sim para reformas legislativas que coibissem tal prática. Ou, no mínimo, os que se opõem ao IGF teriam que demonstrar que eventuais mecanismos adicionais de desincentivo à fuga de capitais estariam fadados ao fracasso – sem deixar de admitir minhas limitações, confesso desconhecer qualquer estudo sério a corroborar essa assertiva.
Além disso, é igualmente contestável o efeito de redução das taxas de poupança e investimento em virtude de novo imposto direto, uma vez que não há indicações que esses níveis tenham aumentado em virtude da insuficiente tributação da renda e do patrimônio que caracteriza o sistema tributário brasileiro (neste sentido, cfr.: “[A] tese dos impostos indiretos como propulsores do desenvolvimento não tem razão de ser. As taxas de poupança e investimento não aumentaram, em que pese a insuficiente tributação da renda e dos patrimônios, a qual ensejaria a propensão para poupar e investir”. Sacha Calmon Navarro Coêlho. Curso de direito tributário brasileiro. 10 ed. Rio de Janeiro. Forense, 2009).
Um grupo de alemães ricos lançou, em 2009, uma campanha na internet para reclamar a volta de um imposto sobre o patrimônio com o objetivo de ajudar o país a ter mais recursos para sair da crise. E dez anos antes, em 1999, o bilionário estadunidense Donald Trump propôs um imposto sobre grandes fortunas para que o governo dos Estados Unidos pudesse ter recursos suficientes para saldar a dívida pública.
Melhor do que aguardar um eventual interesse particular dos detentores de grandes fortunas brasileiros em levar adiante um imposto sobre grandes fortunas é conscientizar a população em relação ao tema e organizar o povo brasileiro em defesa da regulamentação do IGF como meio de consecução da redução das desigualdades sociais, lado a lado com uma ampla reforma tributária que lance mão de todos os mecanismos jurídicos possíveis para dar progressividade ao sistema.
Fonte: Conjur.
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