terça-feira, 9 de março de 2010

Supremo inverte tendência sobre FDE

Muito se propõe, e há muito tempo, para alterar a tributação no País. No entanto, um dos aspectos mais relevante do sistema tributário e que raramente é objeto de qualquer proposição de mudança (na verdade, antes disso, nem mesmo é alvo de análises mais extensas e consistentes) é o Fundo de Participação dos Estados – o FPE. Pode-se dizer que é tratado como se fosse um tabu. Muda o comando do governo federal e mudam as propostas de reformas, quase sempre concentradas no imposto estadual sobre circulação de mercadorias e alguns serviços, mas sempre se procura evitar a menor menção, quanto mais esboço de mudança no FPE. Esse quadro pouco muda no Congresso Nacional, considerado como um tema intrinsecamente vinculado à chamada questão regional, que pautou a maior parte dos debates e decisões da Assembleia Constituinte em torno do capítulo tributário.

O temor de mudar o FPE é que venha a desperta anseios e interesses tão díspares e conflitantes dos governos estaduais, afinal o Brasil ainda é um dos países do mundo de mais profunda desigualdade econômica e social, entre regiões e entre famílias. Paradoxalmente, é justamente para encurtar essa distância que o FPE existe. Assim, a Constituição Federal, no inciso II do artigo 161, remete à lei complementar regular o FPE (como o congênere para Municípios - FPM ), “... especialmente sobre os critérios de rateio..., objetivando promover o equilíbrio sócio-econômico”. Em princípio, a matéria deveria ter sido revista depois de promulgada a nova Carta Magna – visto que o parágrafo único do artigo 39 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determinava que o Congresso votasse tal lei em até um ano. Como não foram aprovados novos critérios de rateio naquele prazo, pouco depois foi editada uma Lei Complementar 62, de 28/12/1989,[1] com claro caráter transitório. O parágrafo 1º do artigo 12º estabeleceu que “os coeficientes individuais de participação dos Estados e do Distrito Federal no ... FPE a serem aplicados até o exercício de 1991, inclusive, são os constantes do Anexo Único”. Ou seja, o rateio do FPE foi “congelado” em 27 cotas por uma medida confessadamente excepcional, tanto que tinha prazo para sua vigência. O problema é que nunca mais foi aprovada a nova lei complementar para ditar o rateio a partir do exercício de 1992 e o que era provisório se tornou permanente.

Passados mais de 20 anos, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade,[2] que é inconstitucional a aplicação de uma tabela rígida de rateio do FPE e que a vigente só poderá ser aplicada até o exercício de 2012. O ineditismo da decisão também envolveu o reconhecimento de que a mera e imediata suspensão dos rateios significaria deixar os Estados sem receber os repasses do FPE, até que o Congresso conseguisse aprovar uma lei de quórum qualificado, e isso implicaria em óbvios e graves danos às finanças dessa esfera de governo. Na prática, aquela Corte não apenas julgou inconstitucional parte da lei, mas condenou a omissão do legislador em ignorar e deixar de regulamentar um comando tão fundamental para a Federação. Ao limitar a vigência do atual rateio até 2012, o órgão máximo do Poder Judiciário considerou que cerca de três anos seria tempo mais do que suficiente para que a sistemática de partilha do FPE seja revista pelo Poder Legislativo.

Antes de entrar no mérito da ação, é interessante comentar o processo de julgamento, recorrendo a juristas que acompanham de perto o STF. Reportaram que raramente a Corte acolheu pedido em ação direta de inconstitucionalidade por omissão (um caso recente envolveu os critérios para a criação de novos municípios, previstos no parágrafo 4º do artigo18 da Constituição).[3] O mais relevante respeita a inovação na técnica de decisão, como foi relatado por assistente qualificado da Corte. “O Tribunal declara a inconstitucionalidade, mas mantém a vigência da Lei por dois exercícios financeiros. Foi preciso fazer isso porque, nesses casos de omissão parcial – ou seja, há lei, mas ela é insuficiente para cumprir o comando constitucional – a retirada da lei é mais prejudicial à ordem constitucional do que a sua manutenção. Imagine se, por exemplo, é apresentada uma ação por omissão parcial em relação ao salário mínimo, que claramente não cumpre os requisitos constitucionais. O Tribunal poderá dizer que há uma omissão inconstitucional, mas não poderá declarar a nulidade da lei e do valor do salário vigente, pois isso seria mais desastroso do que a manutenção do estado atual. Então, nesses casos, a única alternativa acaba sendo a manutenção da vigência da lei até que o legislador faça outra, cumprindo o mandamento constitucional.”

O julgamento sobre o FPE também foi emblemático pela dimensão do objeto da ação: talo fundo é formado por 21,5% do produto da arrecadação da União dos impostos de renda e sobre produtos industrializados, o que significou, no último ano de 2009, um repasse de R$ 45,3 bilhões, equivalente a 1,4% do PIB brasileiro.[4] Mesmo descontados uns quintos vinculados para o ensino básico, o montante líquido equivale a 13% de toda a receita tributária disponível do conjunto dos Estados brasileiros, ou 22% da receita deles no ICMS e quase o dobro que arrecadam de IPVA. Esses índices nacionais, porém, escondem uma importância relativa muito maior do FPE em relação àqueles estados menos desenvolvidos: assim, tal repasse equivale a cerca de um quarto da receita corrente dos Estados do Nordeste e 30% do Norte, sendo que, por unidade federada, responde por quase metade da mesma receita de estados como Roraima, Amapá e Acre; em torno de 40%, no Tocantins e Piauí; e mais de 30% no Maranhão, Paraíba, Alagoas e Sergipe. [5]

A base da decisão do STF foi muito simples: o rateio do FPE vem sendo feito sem critérios. Nem é preciso recorrer a análises jurídicas ou fiscais, basta a gramática para saber que uma tabela, com uma porcentagem fixa para cada unidade federada, que nunca muda, não se trata de um critério de rateio. Se esse havia, era político, na essência.

Aliás, vale recorrer aos anais parlamentares para ler na justificativa da proposição do projeto de lei complementar e também nos pronunciamentos durante as suas votações[6] que a citada tabela com coeficientes rígidos foi acordada entre os representantes dos Estados, reunidos no CONFAZ – Conselho de Política Fazendária (colegiado das respectivas Secretarias de Fazenda). Foram arbitrados, dentre outros aspectos, que 85% do Fundo caberiam aos estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, enquanto 15% ao Sul e Sudeste, [7] e que a cota-parte de São Paulo seria reduzida para 1% para elevação da cota de alguns dos outros (como Espírito Santo), relativamente ao que era aplicado até então.

As razões para tal arbitragem em 1989 remontam à Assembleia Constituinte. Quando instalada, o FPE recebia 14% da arrecadação do IR mais IPI. Na primeira fase dos trabalhos, a Subcomissão de Tributação elevou essa fatia para 18,5% e limitou o rateio apenas para as unidades com renda per capita inferior à média nacional.[8] Na fase seguinte, a comissão temática de Tributos, Orçamentos e Finanças acabou por aumentar novamente a repartição do fundo para 21,5% dos impostos mas eliminando qualquer restrição no rateio.[9] Nada mais mudou nas etapas seguintes e assim foi promulgado na Constituição de outubro de 1988. Portanto, a disputa regional determinou uma maior descentralização de recursos (depois atenuada pela política federal de explorar cada vez mais contribuições não compartilhadas) e balizou a cota que caberia àquelas 3 regiões (arredondando 18,5 por 21,5). [10]

Retrocedendo um pouco mais, menciona-se que o FPE foi criado pela reforma tributária de 1965, com autênticos critérios de rateio – ver arts. 88 a 90 da Lei nº 5.172, de 25/10/1966 (o Código Tributário Nacional) . O fundo era redividido segundo 3 parâmetros: superfície (5%), população (47,5%) e inverso da renda por habitante (47,5% do total). Algum redirecionamento já aparecia na concepção do fundo para beneficiar as unidades menos populosas e menos desenvolvidas (por acaso, dos governos mais fiéis à ditadura militar): por exemplo, nenhum estado contaria como tendo menos de 2% da população nacional (beneficiaria 15 estados hoje) e nenhum poderia ter mais que 10% (penalizaria os 2 maiores).[11] Nos anos 70, foi criada uma reserva para ratear 20% do FPE apenas entre os do Norte e Nordeste.[12]

Recuperar rapidamente esse passado pretende apenas para ilustrar como já se teve critérios de rateio no FPE. Os do CTN foram revogados pela Lei de 1989: é preciso ficar bem claro que a decisão do STF não levanta a menor hipótese de ressuscitar aqueles critérios, independente de suas fórmulas ou lógicas. Isto significa que o STF não escolheu entre este ou aquele rateio, sua decisão nada tem a ver com quanto cada estado recebia e nem implica em determinara quanto receberá no futuro. A decisão, que pode ser considera histórica, do STF é que foram omitidos os critérios e ficou só o rateio no FPE, arbitrado (politicamente) em torno de uma tabela rígida, que ignora as mudanças e as distâncias entre os Estados, logo, não atende ao preceito básico de reequilibrar as finanças e as condições de governabilidade entre seus governos.[13]

O FPE passou mais de duas décadas ignorando que as economias das diferentes regiões, Estados e localidades evoluíram de forma muito diferenciada, como é natural. Por exemplo, segundo o IBGE,[14] em 1985, só duas regiões (Sudeste e Sul) e seis estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Rio Grande do Sul, Amazonas e Santa Catarina) tinham PIB per capita acima do nacional. Esse quadro mudou muito em 2007 (último ano para o qual o instituto publicou o PIB per capita), passando o Centro-Oeste a superar média nacional (enquanto o Nordeste ficou ainda mais distante)[15] e mudando o conjunto de estados: caiu Amazonas e subiu Mato Grosso, Paraná e Espírito Santo, sem contar que, na liderança do ranking do maior PIB per capita, passou para o Distrito Federal, com 2,8 vezes a média brasileira, superando de longe a São Paulo, há 1,56 vezes daquela média.

Como aqui ilustrado, a expansão da fronteira agrícola e dos serviços, desconcentração da indústria, várias mudanças ocorreram na economia e na sociedade e são ignorados pelo mecanismo que deveria fechar a equação fiscal, o FPE, de forma a redistribuir recursos para os governos que podem arrecadar menos que os demais. [16]

Como visto nesta brevíssima história do rateio do FPE, certa dose de arbitrariedade tem sido uma marca característica do rateio do FPE, desde seu desenho no auge da ditadura militar, até mesmo pós-redemocratização, se valendo da desproporção entre assentos no Congresso e divisão da população. Tal opinião não significa criticar o comando constitucional que corretamente atribui uma função redistributiva ao FPE, muito pelo contrário, só se defende que o ideal seria perseguir tal objetivo de diminuir a distância entre os desiguais segundo critérios que fossem eminentemente técnicos, consistentes e coerentes.

Esse contexto lembra a tradicional brincadeira de crianças que gritam: Estátua! Tal grito foi dado em 1989 e não mais foi suspenso, até que o STF gritasse mais alto e dissesse que rateio sem critério é inconstitucional, assim como o Congresso se omitir de regulamentar uma matéria que ele mesmo avocou a si, quando propôs e aprovou ao final da década passada a citada lei.

Novos critérios para o FPE devem ponderar o potencial e a efetiva arrecadação direta e as necessidades de cada ente federado. Isto significa ampliar o leque de trabalho, que não pode ficar restrito apenas a tais transferências, mas precisam considerar também receitas e gastos. O cenário político também mudará radicalmente em relação ao que tem vigorado nos últimos anos e décadas. Por força da decisão do STF, quisessem ou não, logo no início dos mandatos dos futuros Governadores (bem assim do futuro Presidente da República), eles precisarão negociar muito entre si, acordar e pressionar o Congresso para aprovar uma nova lei complementar (quorum qualificado). Se ponderados critérios técnicos, inevitavelmente isso deveria levar a se repensar junto também o ICMS.

Naquilo que todos sempre temeram tocar e por muito tempo, o STF foi muito corajoso, inverteu a tendências das iniciativas políticas, puxou o FPE para o centro do debate político e federativo. Há uma hipótese razoável que o acordo em torno dos novos critérios de rateio do FPE possam representar a ponta do barbante a ser puxado para desatar o nó que tem sido a tão embaralhada reforma tributária nos últimos tempos. Quem antes era supostamente contra mudanças, de repente precisará mais que nunca aprovar mudanças. Assim, a inédita decisão do STF pode forçar o avanço da reforma que todos sabem ser necessária mas muitos preferem se acomodar na omissão do que enfrentar a transformação.

Por José Roberto R. Afonso.

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